domingo, 14 de novembro de 2010

Redoma

(1998)


Na curiosidade de viver o novo, continuávamos o nosso caminho, 
entre cansaços prazerosos e compensadores. 
as coisas mais extasiantes oferecidas aos olhos, ouvidos, ao nosso frágil e vulnerável corpo.

Uma regressada há, pelos menos, vinte anos de vida morna que enchia-se de vida real....
nos despimos de vergonhas e medos, não importava valores, regras, muito menos a sensatez dos pensamentos que por raras vezes chegavam até nós....
A partir dali, o acordo selado. veio a promessa, ainda que discreta, do estardalhaço que faria na mente e no coração.

A música como de costume, cúmplice de todas as verdadeiras intenções, veio inundar o ambiente e tomou conta do lugar, merecidamente.
O som que penetrava em nós, nos embriagava de magia e significados. 
Juntos embalávamos os nossos corpos. 
a oportunidade de extravasar a alma através dessa carne com que nos vestimos é  livre de qualquer sinal de perigo. A partir daí, a vontade de dividir sensações, inovar as formas e renovar o espírito tornava-se imperativa, em estado de puro equilíbrio.

Havia um misto de sensações e sentimentos que se confundiam. 
Como se a boca inalasse todos os aromas ali exalados, enquanto aos ouvidos eram reveladas imagens que somente eles podiam registrar, os olhos degustavam com apetite voraz tudo o que chegava e com o olfato acariciava a pele e o toque não poderia deixar de ser um ato sublime.

Entre a dúvida do que viria e a certeza de continuar a ser o que já era, apostamos tudo no risco. 
E saímos com a certeza de ter provado com todos os sentidos e ter se lambuzado de muita vida, até não poder mais.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Seu Antonio

São João 2007 - Ilha de Itaparica
(2005)
apagou-se João.
Antonio
contador de casos e
senhor dos juramentos,
cheio de gestos próprios
ria à toa,
já disse, homem simples.

ele apostava na vida.
na palavra de honra,
e no tempo dos bichos e das plantas
ensaiei demais, ele tinha pressa.

me contou uma vez que perdeu a mania de guardar as coisas quando criança.
acordou cedo pra vestir roupa nova em dia de são joão - seu aniversário
e nesse mesmo dia o fogo queimou toda sua apegação às coisas materiais.
depois do acontecido,
bebia, dançava, comia gordura e não guardava mais nada
inimigo, segredo ou rancor.

por teimosia e proteção, era de ogun com oxossi.
casou-se com Ernestina.
nasceram Luciclei, Sandra e Sidinei,
fim do mês fariam 30 anos,
“ele era meu pai, minha mãe, meu tudo”.
palavras da viúva.

agora nem pés nos pés,
nem briga, nem riso,
nem abraço, nem beijo
ou vício de bife com arroz todo dia
(foi seu último pedido. “comida de hospital tem gosto de nada, mulher!”)

sozinho naquele lugar frio, branco, sombrio.
no silêncio da madrugada,

balas coloridas distribuídas aos leitos
e já não sabia se sonhava ou dormia,
...
tira água do pulmão,
pega o braço, acha a veia, bota o soro, injeção
agonia.
enquanto um dorme de um lado, o outro vela e caixão.

Com ele, aprendi que o tempo é rei.
Agora é agora. Depois é depois.

Indagas

Salinas da Margarida, 2005
2010

Há perguntas demais que ganham forma 
tomam as ruas, os becos, os dias e as noites,  
se multiplicam de tal forma, dentro e fora de mim.
Às vezes queria viver para acordar, comer, cagar, trepar e dormir.
Acho que a vida faria mais sentido, sem ter que justificá-la todo o tempo
manter-se firme, com um certo propósito, 
ainda que se desconheça.
Eu morri há um ano atrás, e ali, naquele momento - uma das mortes de uma vida -, 
acordei com possibilidades - uma escolha ou uma sentença?
Ah! louca esperança, doce esperança. 
De amanhã acontecer de ser outro dia 
e o mundo girar, 
e eu girar com ele e tudo mudar e mudar.
Hein? mudo eu?

domingo, 4 de julho de 2010

Assombro

Vista de casa Sto Antonio - 2010

Clarices e Marias
Hildas e Quintanices
me fazem companhia quando tudo arde.
as palavras mudas na boca,
espalham tinta e melam meu céu em noite de lua,
perdidas nas entrelinhas do mundo.



sábado, 3 de julho de 2010

Ilha de Itaparica - 2007

Hoje eu me senti no meio do vento que gira,
rodopia, clareia, estremece e vira água.
andei em cima da chuva e me perdi nas horas,
segui no curso do primeiro rio que vi,
(sub)emergi, vaguei com visão de inseto,
sem saber-se larva, pedra ou lata.
o cheiro de sombra me acompanhava
e como quem esconde mistério no bolso
só pra não perder memória e endereço,
agarro-me a pequenos mundos.
“lugar sem comportamento é o coração”

NoPousodaPalavra

"Cada pássaro sabe a rota do retorno.
Cada pássaro sabe a rota de si.
Cada pássaro, na rota, sabe-se pássaro".

Damário Dacruz 
 (Foto: Damário e Zeca - Cachoeira 2007)

Leminskiando

Se tento escrever
as palavras perdem o sentido,
riem de mim, letra por letra
organizadas à minha frente.
Basta viver
e lá se vão elas a delirar,
pegar forma de pássaro, de verde, de gente.